Bolívar Torres, Rio de Janeiro (RJ) · 11/12/2010 |
Folcloristas e historiadores oficiais sempre fizeram da Revolução Farroupilha uma história excessivamente bem contada, uma narrativa sem falhas e brechas, na qual atuavam com brio os seus grandes heróis, de Bento Gonçalves ao general Antônio de Sousa Neto. Desse período, extraiu-se boa parte dos mitos que ainda perduram no imaginário do Rio Grande do Sul - esta terra de valentes idealistas, que desafiaram um Império para impor os seus valores progressistas.
A mitologia, porém, não resiste a documentos históricos e pesquisas neutras. Em História regional da infâmia, o historiador, tradutor e romancista Juremir Machado acerta as contas com o folclore, trazendo a tona o que há de contraditório, imperfeito e mal resolvido dentro dessa “fábula” revolucionária. Com a ajuda de uma equipe de dez pesquisadores, debruçou-se sobre mais de 15 mil documentos empoeirados dos arquivos regionais e nacionais, em busca de provas ainda ignoradas e omitidas por aqueles que alimentam o mito. Encontrou trechos de diários, cartas, recibos bancários e velhas páginas de jornais que revelam a infâmia por trás da glória e mostram como os protagonistas da Farrapa colocaram interesses pessoais e comerciais muito à frente de ideais progressistas.
Antes de serem os heróis que ilustram as páginas dos livros escolares e os versos dos poemas épicos dos CTG’s, eram fazendeiros que não queriam abrir mão de seus privilégios e se sentiam prejudicados pelo Império. Nem pensavam em libertar seus escravos. Tudo não teria passado, na verdade, de um golpe para que a oligarquia local reforçasse o seu poder interno. Trazendo à luz um documento bombástico, e até então inédito, o livro comprova que os supostos abolicionistas farroupilhas financiaram a sua Revolução graças a venda de escravos. Outros arquivos infames revelam as discordâncias internas dos farrapos, as tentativas de golpe, os assassinatos políticos mal explicados, além das denúncias de corrupção e as disputas mesquinhas por indenizações de guerra.
Como em todo bom esforço de desconstrução, o historiador é um estraga-prazeres que toca com insolência em pontos espinhosos da identidade gaúcha. Qual foi o papel dos negros escravos na Revolução? Juremir responde na lata: foram massas de manobra, usados e enganados pelos farrapos, que lhe prometiam liberdade para melhor incorporá-los no exército. Ao final do movimento, incapazes de cumprir a promessa e temendo provocar uma rebelião caso fossem entregues de volta aos imperiais, os farrapos teriam traído os negros revolucionários durante a batalha de Porongos. Naquela que é possivelmente a parte mais polêmica do livro, Juremir levanta a hipótese de que o episódio não passou de um estratagema para aniquilar os negros com um falso ataque surpresa.
Leia, abaixo, uma entrevista com o autor.
PORTAL - História regional da infâmia não é a primeira tentativa de revisar os mitos farroupilhas. Seu livro compila uma série de questionamentos e fatos mal resolvidos que obcecaram muitos historiadores. De certa forma, rende homenagem a intelectuais como Décio Freitas, Tau Golin e Spencer Leitman e muitos outros que desarrumaram a estrutura bem montada dos mitos, buscando novas óticas e possibilidades de interpretação...
JUREMIR: Não creio que a palavra revisionista seja adequada. Prefiro falar em desconstrução. Ou simplesmente em trabalho de historiador sem comprometimento com mitos. Décio, Tau, Spencer, Mário Maestri e Moacyr Flores fizeram o que deve ser feito. Pesquisaram. Não resolveram tudo. Deixaram algumas brechas. Eu prossegui. Sistematizei, organisei, analisei o que lhes escapou e acrescentei documentos e fatos nunca antes dissecados. Meu trabalho parte do que já foi feito, algumas vezes de maneira pontual, e vai adiante, fixando uma nova leitura, uma maneira global de ver e principalmente descortinando fatos e elementos jamais enfatizados ou tratados.
PORTAL - E como a História regional da infâmia foi recebida? O
ambiente de hoje é mais propício a desconstruções?
JUREMIR: O livro tem sido muito comentado. Circulou muita coisa na internet (twitter, facebook, blogs, e-mails). A grande imprensa, exceto a Rede Record-RS, onde trabalho, silenciou. Alguns silenciam por não gostar de mim. Outros, para não ferir a sensibilidade dos tradicionalistas ou por apego mesmo ao nosso passado heróico. O livro já vai para terceira edição. Vendeu muito bem na Feira do Livro de Porto Alegre. Recebo, no entanto, ameaças e insultos a todo momento. Já recebi ligações anônimas de homens prometendo me capar ou me dar uma surra de relho. Faz parte do jogo.
PORTAL - Entre os quinze mil documentos que analisou com sua equipe, havia algo novo ou perdido?
JUREMIR: Havia muito documento jamais transcrito ou muito documento transcrito mas jamais analisado, focalizado ou lido na profundidade do seu conteúdo. O documento mais importante que trabalhei, tirada da Coleção Varela (acervo de documento sobre a RF) é o que chamo de documento infame: um processo de Domingos José de Almeida, que foi cérebro e organizador do movimento, assim como ministro da Fazenda da República Rio-grandense, exigindo ressarcimento dos negros que vendera no Uruguai para financiar o trem de guerra da revolução. Almeida dá todos os dados: quantos negros vendeu, para quem, quando arrecadou e gastou, o que comprou, etc. É uma prova irrefutável de que a RF, cujos entusiastas afirmam ter sido abolicionista, foi financiada com a venda de escravos. É arrasador. Não entendo como esses documentos nunca foram tratados antes.
PORTAL - Outros documentos comprovam que a postura dos líderes farroupilhas não poderia ser mais ambivalente. Por que a Revolução Farroupilha é um movimento tão ambíguo, podendo ora ser visto ora como separatista ora como republicano, ora ser acusado de genocida e traidor da causa negra, ora vangloriado como progressista, à frente do seu tempo, sustentador de causas perdidas?
JUREMIR: No começo, os farroupilhas não eram progressistas bem republicanos, muito menos abolicionistas, o que nunca seriam. Queriam apenas pagar menos impostos, ter liberdade para conduzir seus rebanhos do Uruguai para o Brasil e do Brasil para o Uruguai sem pagar taxas e ter ajuda do Império para superar prejuízos provocados por um surto de carrapatos em 1834. Havia também a participação de militares descontentes, que estavam na geladeira do Rio Grande do Sul por ter participado dos movimentos que leveram, em 1831, à abdicação de D. Pedro I. O andar da carruagem obrigou os rebeldes a adotar novas posições. Neto, que proclamou a República, era contra ela, como mostram os documentos. Bento nunca foi a favor dela. Era monarquista. Os negros foram usados de acordo com as necessidades de mão de obra militar e eliminados quando se tornaram um estorvo à obtenção de uma anistia rentável.
PORTAL - Você compara os farrapos às Farc colombianas. Por que?
JUREMIR: A RF tinha a ideologia da Farsul e os métodos das Farc: invadia, sequestrava autoridades, matava, estuprava, coureava o gado alheio, tomou para si parte do território nacional, enfrentou um longo processo na justiça de gente que queria recuperar as suas propriedades ou fazer valer o Estado de Direito, etc.
PORTAL - O general Neto é o mais romantizado dos farroupilhas? Por que?
JUREMIR: Talvez por gostar de carreira, de jogo e de mulheres. E por ter ido embora, depois de assinar a rendição como todo mundo, para o Uruguai, sem mesmo alforriar um filho seu, Moisés, que foi comprado por inimigo, de quem finalmente ganhou a liberdade.
PORTAL - Como as discordâncias internas entre os líderes do movimento costumam ser tratadas pelos historiadores?
JUREMIR: Como meras discordâncias entre homens de personalidade forte ou como disputas por mulheres (Apesar de claros indícios apontando crime político, muitos ainda insistem que o homicídio de Antonio Paulo da Fontoura teria sido causado por questões passionais). Jamais como consequência de corrupção, autoritarismo, disputa pelo poder e traição. Muitos líderes, como Domingos José de Almeida, aceitaram a anistia do império antes do movimento acabar.
PORTAL - Escancarada a oposição entre a minoria liderada por Vicente da Fontoura e a maioria de Bento Gonçalves, assim com as denúncias feitas por Fontoura em diversas cartas, chamando Gonçalves de ladrão, corrupto, ditador e assassino, ficaria difícil para os historiadores livrar a cara de todos os envolvidos. Ou um ou outro precisa estar certo - ou ainda, em uma terceira hipótese, todos errados. Como aqueles que idealizaram a figura de Bento Gonçalves costumam avaliar a participação de Fontoura? Como maior opositor e delator dos farrapos, que lugar coube a ele na história oficial?
JUREMIR: Costumam ignorá-lo ou, sem qualquer argumento sério, dizer que era um depressivo, um chato, um exagerado. Fontoura foi o Pedro Collor da época. Foi o cara que entregou tudo. Talvez por isso tenha sido finalmente assassinado (Terminada a Revolução, Fontoura foi assassinado, em 1860, por um adversário político durante as eleições municipais de Cachoeira do Sul). Almeida também temia ser morto por causa do que dizia.
PORTAL - A construção do mito de Bento Gonçalves passou por narradores, folcloristas, jornalistas, historiadores e tradicionalistas. Cada um deles omitiu documentos e inventou desculpas para não comprometer a trajetória heróica do coronel. Que interesse existiria por trás da mitificação de Gonçalves?
JUREMIR: Talvez por ter sido uma revolução de proprietários, de fazendeiros, de gente que, mesmo tendo perdido, continuou a mandar no Rio Grande do Sul. Bento Gonçalves morreu, dois anos depois do final da RF, deixando 53 escravos para seus herdeiros. Embora ele tenha afirmado em uma carta que saiu da guerra como "o homem mais pobre do país", basta ver o seu inventário para saber que estava mentindo. Morreu rico. Todos se saíram muito bem depois da RF. Uma parte continuou atuando como estancieiro e como militar. Novas guerras surgiriam. Ninguém ficou pobre.
PORTAL - O curioso, porém, é que no resto do mundo a História costuma ser contada pelos vencedores e Gonçalves, ao contrário, acabou derrotado politicamente pela oposição. Por que na Farrapa a questão se inverteu, e os vencidos é que manipularam o imaginário?
JUREMIR: O mito farroupilha foi construído em várias etapas. Primeiro passou por Julio de Castilhos, que, na necessidade de formar uma identidade gaúcha, propôs que se recuperasse o que havia acontecido nesta guerra. Isso começa a funcionar com a chegada da República e a necessidade de construir um mito fundador. No anos 30 a revolução completa cem anos, no auge do nacionalismo. Cria-se o Instituto Histórico e Geográfico, com historiadores, muitos deles militares, trabalhando para consolidar o mito. Boa parte do história farroupilha é uma louvação de militares, e outra, de folcloristas, como foi Alfredo de Ferreira Rodrigues.
PORTAL - Nunca houve consenso entre os historiadores a respeito do separatismo farroupilha. Você mostra que, na década de 30, nos tempos dourados do fascismo, um dos maiores opositores dessa tese, o historiador e general Souza Docca, chegou a transformar um movimento criado para separar o Rio Grande do Sul do Brasil em "uma desesperada luta pela integração nacional". Assim como os farroupilhas, os historiadores também se arranjaram para definir o caráter da Revolução de acordo com o vento político de seu tempo?
JUREMIR: Claro. A história é sempre história do presente sobre o passado. A Revolução Farroupilha foi feita por militares e fazendeiros e contada por militares nacionalitas. É um discurso ideológico arranjada para fabricar uma identidade, um mito e uma visão de mundo.
PORTAL - A história do Rio Grande do Sul, aliás, quase sempre foi escrita por militares. Há conflitos de interesses entre a atividade militar e a de historiador?
JUREMIR: Pode não haver. Mas é difícil. A história da Revolução Francesa, por exemplo, já foi contada por muita gente, mas os melhores livros são de historiadores profissionais.
PORTAL - O papel do negro na história riograndense tem um déficit de representação ainda maior que a história dos outros estados?
JUREMIR: Certamente. Esse déficit começa a ser apagado. Há muita gente nas universidades pesquisando o papel do negro na RF. Cito a historiadora gaúcha Daniela Vallandro, que faz uma tese na UFRJ. Durante muito tempo, alguns até por racismo, achavam que esse tema não era importante, que nada havia a dizer sobre isso de especial.
PORTAL – Já se pode afirmar ao certo o que realmente aconteceu em Porongos? Como a opinião pública gaúcha lida com este tema hoje? Existe sentimento de culpa e dívida em relação aos traídos?
JUREMIR: Os documentos existente indicam claramente a traição. As contraprovas produzidas são pífias. Começa a existir uma consciência forte de que esse massacre aconteceu.
PORTAL - O delírio rebelde e brigador continua mais do que presente na psique gaúcha, como se servisse para atestar a sua identidade. Pode ser conferido em suas canções regionais, em seus hinos de torcida de futebol, e até na estratégia de marketing das empresas. Passados mais de cem anos da Farrapa, tradicionalistas ainda bradam: "Não podemos nos entregar para os homens!" Que inimigos abstratos são esses que povoam e mobilizam o imaginário gaúcho? Como se deu a transferência do mito para os dias modernos? Assim como oligarquias locais da época se serviram dele para aumentar os seus poderes, o ideal separatista serviria ainda hoje como instrumento de poder e manipulação?
JUREMIR: Há uma relação entre tradicionalismo e mídia: a mídia quer cativa um público; adula os tradicionalistas, que se tornam fiéis dos veículos aduladores. Isso traz bons patrocinadores. O ciclo se fecha. Um alimenta o outro. Gera-se uma identidade forte, um orgulho realimentado constantemente. A verdade histórica não interessa. Trata-se de uma ideologia conservadora a serviço de um pragmatismo midiático. Cada um ganha o seu.
LIVRO: História regional da infâmia - O destino dos negros e outras iniquidades basileiras (ou como se produzem os imaginários)
Autor: Juremir Machado da Silva
Editora: L&PM
Páginas: 344
A mitologia, porém, não resiste a documentos históricos e pesquisas neutras. Em História regional da infâmia, o historiador, tradutor e romancista Juremir Machado acerta as contas com o folclore, trazendo a tona o que há de contraditório, imperfeito e mal resolvido dentro dessa “fábula” revolucionária. Com a ajuda de uma equipe de dez pesquisadores, debruçou-se sobre mais de 15 mil documentos empoeirados dos arquivos regionais e nacionais, em busca de provas ainda ignoradas e omitidas por aqueles que alimentam o mito. Encontrou trechos de diários, cartas, recibos bancários e velhas páginas de jornais que revelam a infâmia por trás da glória e mostram como os protagonistas da Farrapa colocaram interesses pessoais e comerciais muito à frente de ideais progressistas.
Antes de serem os heróis que ilustram as páginas dos livros escolares e os versos dos poemas épicos dos CTG’s, eram fazendeiros que não queriam abrir mão de seus privilégios e se sentiam prejudicados pelo Império. Nem pensavam em libertar seus escravos. Tudo não teria passado, na verdade, de um golpe para que a oligarquia local reforçasse o seu poder interno. Trazendo à luz um documento bombástico, e até então inédito, o livro comprova que os supostos abolicionistas farroupilhas financiaram a sua Revolução graças a venda de escravos. Outros arquivos infames revelam as discordâncias internas dos farrapos, as tentativas de golpe, os assassinatos políticos mal explicados, além das denúncias de corrupção e as disputas mesquinhas por indenizações de guerra.
Como em todo bom esforço de desconstrução, o historiador é um estraga-prazeres que toca com insolência em pontos espinhosos da identidade gaúcha. Qual foi o papel dos negros escravos na Revolução? Juremir responde na lata: foram massas de manobra, usados e enganados pelos farrapos, que lhe prometiam liberdade para melhor incorporá-los no exército. Ao final do movimento, incapazes de cumprir a promessa e temendo provocar uma rebelião caso fossem entregues de volta aos imperiais, os farrapos teriam traído os negros revolucionários durante a batalha de Porongos. Naquela que é possivelmente a parte mais polêmica do livro, Juremir levanta a hipótese de que o episódio não passou de um estratagema para aniquilar os negros com um falso ataque surpresa.
Leia, abaixo, uma entrevista com o autor.
PORTAL - História regional da infâmia não é a primeira tentativa de revisar os mitos farroupilhas. Seu livro compila uma série de questionamentos e fatos mal resolvidos que obcecaram muitos historiadores. De certa forma, rende homenagem a intelectuais como Décio Freitas, Tau Golin e Spencer Leitman e muitos outros que desarrumaram a estrutura bem montada dos mitos, buscando novas óticas e possibilidades de interpretação...
JUREMIR: Não creio que a palavra revisionista seja adequada. Prefiro falar em desconstrução. Ou simplesmente em trabalho de historiador sem comprometimento com mitos. Décio, Tau, Spencer, Mário Maestri e Moacyr Flores fizeram o que deve ser feito. Pesquisaram. Não resolveram tudo. Deixaram algumas brechas. Eu prossegui. Sistematizei, organisei, analisei o que lhes escapou e acrescentei documentos e fatos nunca antes dissecados. Meu trabalho parte do que já foi feito, algumas vezes de maneira pontual, e vai adiante, fixando uma nova leitura, uma maneira global de ver e principalmente descortinando fatos e elementos jamais enfatizados ou tratados.
PORTAL - E como a História regional da infâmia foi recebida? O
ambiente de hoje é mais propício a desconstruções?
JUREMIR: O livro tem sido muito comentado. Circulou muita coisa na internet (twitter, facebook, blogs, e-mails). A grande imprensa, exceto a Rede Record-RS, onde trabalho, silenciou. Alguns silenciam por não gostar de mim. Outros, para não ferir a sensibilidade dos tradicionalistas ou por apego mesmo ao nosso passado heróico. O livro já vai para terceira edição. Vendeu muito bem na Feira do Livro de Porto Alegre. Recebo, no entanto, ameaças e insultos a todo momento. Já recebi ligações anônimas de homens prometendo me capar ou me dar uma surra de relho. Faz parte do jogo.
PORTAL - Entre os quinze mil documentos que analisou com sua equipe, havia algo novo ou perdido?
JUREMIR: Havia muito documento jamais transcrito ou muito documento transcrito mas jamais analisado, focalizado ou lido na profundidade do seu conteúdo. O documento mais importante que trabalhei, tirada da Coleção Varela (acervo de documento sobre a RF) é o que chamo de documento infame: um processo de Domingos José de Almeida, que foi cérebro e organizador do movimento, assim como ministro da Fazenda da República Rio-grandense, exigindo ressarcimento dos negros que vendera no Uruguai para financiar o trem de guerra da revolução. Almeida dá todos os dados: quantos negros vendeu, para quem, quando arrecadou e gastou, o que comprou, etc. É uma prova irrefutável de que a RF, cujos entusiastas afirmam ter sido abolicionista, foi financiada com a venda de escravos. É arrasador. Não entendo como esses documentos nunca foram tratados antes.
PORTAL - Outros documentos comprovam que a postura dos líderes farroupilhas não poderia ser mais ambivalente. Por que a Revolução Farroupilha é um movimento tão ambíguo, podendo ora ser visto ora como separatista ora como republicano, ora ser acusado de genocida e traidor da causa negra, ora vangloriado como progressista, à frente do seu tempo, sustentador de causas perdidas?
JUREMIR: No começo, os farroupilhas não eram progressistas bem republicanos, muito menos abolicionistas, o que nunca seriam. Queriam apenas pagar menos impostos, ter liberdade para conduzir seus rebanhos do Uruguai para o Brasil e do Brasil para o Uruguai sem pagar taxas e ter ajuda do Império para superar prejuízos provocados por um surto de carrapatos em 1834. Havia também a participação de militares descontentes, que estavam na geladeira do Rio Grande do Sul por ter participado dos movimentos que leveram, em 1831, à abdicação de D. Pedro I. O andar da carruagem obrigou os rebeldes a adotar novas posições. Neto, que proclamou a República, era contra ela, como mostram os documentos. Bento nunca foi a favor dela. Era monarquista. Os negros foram usados de acordo com as necessidades de mão de obra militar e eliminados quando se tornaram um estorvo à obtenção de uma anistia rentável.
PORTAL - Você compara os farrapos às Farc colombianas. Por que?
JUREMIR: A RF tinha a ideologia da Farsul e os métodos das Farc: invadia, sequestrava autoridades, matava, estuprava, coureava o gado alheio, tomou para si parte do território nacional, enfrentou um longo processo na justiça de gente que queria recuperar as suas propriedades ou fazer valer o Estado de Direito, etc.
PORTAL - O general Neto é o mais romantizado dos farroupilhas? Por que?
JUREMIR: Talvez por gostar de carreira, de jogo e de mulheres. E por ter ido embora, depois de assinar a rendição como todo mundo, para o Uruguai, sem mesmo alforriar um filho seu, Moisés, que foi comprado por inimigo, de quem finalmente ganhou a liberdade.
PORTAL - Como as discordâncias internas entre os líderes do movimento costumam ser tratadas pelos historiadores?
JUREMIR: Como meras discordâncias entre homens de personalidade forte ou como disputas por mulheres (Apesar de claros indícios apontando crime político, muitos ainda insistem que o homicídio de Antonio Paulo da Fontoura teria sido causado por questões passionais). Jamais como consequência de corrupção, autoritarismo, disputa pelo poder e traição. Muitos líderes, como Domingos José de Almeida, aceitaram a anistia do império antes do movimento acabar.
PORTAL - Escancarada a oposição entre a minoria liderada por Vicente da Fontoura e a maioria de Bento Gonçalves, assim com as denúncias feitas por Fontoura em diversas cartas, chamando Gonçalves de ladrão, corrupto, ditador e assassino, ficaria difícil para os historiadores livrar a cara de todos os envolvidos. Ou um ou outro precisa estar certo - ou ainda, em uma terceira hipótese, todos errados. Como aqueles que idealizaram a figura de Bento Gonçalves costumam avaliar a participação de Fontoura? Como maior opositor e delator dos farrapos, que lugar coube a ele na história oficial?
JUREMIR: Costumam ignorá-lo ou, sem qualquer argumento sério, dizer que era um depressivo, um chato, um exagerado. Fontoura foi o Pedro Collor da época. Foi o cara que entregou tudo. Talvez por isso tenha sido finalmente assassinado (Terminada a Revolução, Fontoura foi assassinado, em 1860, por um adversário político durante as eleições municipais de Cachoeira do Sul). Almeida também temia ser morto por causa do que dizia.
PORTAL - A construção do mito de Bento Gonçalves passou por narradores, folcloristas, jornalistas, historiadores e tradicionalistas. Cada um deles omitiu documentos e inventou desculpas para não comprometer a trajetória heróica do coronel. Que interesse existiria por trás da mitificação de Gonçalves?
JUREMIR: Talvez por ter sido uma revolução de proprietários, de fazendeiros, de gente que, mesmo tendo perdido, continuou a mandar no Rio Grande do Sul. Bento Gonçalves morreu, dois anos depois do final da RF, deixando 53 escravos para seus herdeiros. Embora ele tenha afirmado em uma carta que saiu da guerra como "o homem mais pobre do país", basta ver o seu inventário para saber que estava mentindo. Morreu rico. Todos se saíram muito bem depois da RF. Uma parte continuou atuando como estancieiro e como militar. Novas guerras surgiriam. Ninguém ficou pobre.
PORTAL - O curioso, porém, é que no resto do mundo a História costuma ser contada pelos vencedores e Gonçalves, ao contrário, acabou derrotado politicamente pela oposição. Por que na Farrapa a questão se inverteu, e os vencidos é que manipularam o imaginário?
JUREMIR: O mito farroupilha foi construído em várias etapas. Primeiro passou por Julio de Castilhos, que, na necessidade de formar uma identidade gaúcha, propôs que se recuperasse o que havia acontecido nesta guerra. Isso começa a funcionar com a chegada da República e a necessidade de construir um mito fundador. No anos 30 a revolução completa cem anos, no auge do nacionalismo. Cria-se o Instituto Histórico e Geográfico, com historiadores, muitos deles militares, trabalhando para consolidar o mito. Boa parte do história farroupilha é uma louvação de militares, e outra, de folcloristas, como foi Alfredo de Ferreira Rodrigues.
PORTAL - Nunca houve consenso entre os historiadores a respeito do separatismo farroupilha. Você mostra que, na década de 30, nos tempos dourados do fascismo, um dos maiores opositores dessa tese, o historiador e general Souza Docca, chegou a transformar um movimento criado para separar o Rio Grande do Sul do Brasil em "uma desesperada luta pela integração nacional". Assim como os farroupilhas, os historiadores também se arranjaram para definir o caráter da Revolução de acordo com o vento político de seu tempo?
JUREMIR: Claro. A história é sempre história do presente sobre o passado. A Revolução Farroupilha foi feita por militares e fazendeiros e contada por militares nacionalitas. É um discurso ideológico arranjada para fabricar uma identidade, um mito e uma visão de mundo.
PORTAL - A história do Rio Grande do Sul, aliás, quase sempre foi escrita por militares. Há conflitos de interesses entre a atividade militar e a de historiador?
JUREMIR: Pode não haver. Mas é difícil. A história da Revolução Francesa, por exemplo, já foi contada por muita gente, mas os melhores livros são de historiadores profissionais.
PORTAL - O papel do negro na história riograndense tem um déficit de representação ainda maior que a história dos outros estados?
JUREMIR: Certamente. Esse déficit começa a ser apagado. Há muita gente nas universidades pesquisando o papel do negro na RF. Cito a historiadora gaúcha Daniela Vallandro, que faz uma tese na UFRJ. Durante muito tempo, alguns até por racismo, achavam que esse tema não era importante, que nada havia a dizer sobre isso de especial.
PORTAL – Já se pode afirmar ao certo o que realmente aconteceu em Porongos? Como a opinião pública gaúcha lida com este tema hoje? Existe sentimento de culpa e dívida em relação aos traídos?
JUREMIR: Os documentos existente indicam claramente a traição. As contraprovas produzidas são pífias. Começa a existir uma consciência forte de que esse massacre aconteceu.
PORTAL - O delírio rebelde e brigador continua mais do que presente na psique gaúcha, como se servisse para atestar a sua identidade. Pode ser conferido em suas canções regionais, em seus hinos de torcida de futebol, e até na estratégia de marketing das empresas. Passados mais de cem anos da Farrapa, tradicionalistas ainda bradam: "Não podemos nos entregar para os homens!" Que inimigos abstratos são esses que povoam e mobilizam o imaginário gaúcho? Como se deu a transferência do mito para os dias modernos? Assim como oligarquias locais da época se serviram dele para aumentar os seus poderes, o ideal separatista serviria ainda hoje como instrumento de poder e manipulação?
JUREMIR: Há uma relação entre tradicionalismo e mídia: a mídia quer cativa um público; adula os tradicionalistas, que se tornam fiéis dos veículos aduladores. Isso traz bons patrocinadores. O ciclo se fecha. Um alimenta o outro. Gera-se uma identidade forte, um orgulho realimentado constantemente. A verdade histórica não interessa. Trata-se de uma ideologia conservadora a serviço de um pragmatismo midiático. Cada um ganha o seu.
LIVRO: História regional da infâmia - O destino dos negros e outras iniquidades basileiras (ou como se produzem os imaginários)
Autor: Juremir Machado da Silva
Editora: L&PM
Páginas: 344
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